Fernando Pessoa: Um Poeta que é mais que um Poeta
A personalidade e a obra literária de Fernando Pessoa estiveram em evidência na palestra que o Professor Doutor Fernando Cabral Martins proferiu na Biblioteca de Alcochete no dia 17 de novembro, intitulada “Um poeta que é mais que um poeta”.
Esta iniciativa inserida nas comemorações dos 130 anos de Fernando Pessoa no concelho de Alcochete contou também com a participação do vereador da Cultura, Identidade Local e Turismo, Vasco Pinto, a quem coube dar as boas-vindas ao palestrante e agradecer ao público presente.
O autarca considerou esta palestra “como um momento alto da programação dedicada a Fernando Pessoa” e parafraseando Fernando Cabral Martins, deu o mote para a palestra ao afirmar que “Fernando Pessoa elevou a literatura e a língua portuguesa para outra dimensão da sua existência e que certamente perdurará ao longo da existência do Homem”.
O orador convidado comentou os aspetos centrais da relevância de Pessoa para toda a gente que gosta de literatura e poesia, um poeta que é conhecido em todo o mundo e que é reconhecido como um dos grandes poetas do século XX.
“Há no Pessoa várias coisas que são completamente singulares e que parecem ter sido obra de uma coincidência fabulosa. Por exemplo, o facto de ele ter nascido no centro de Lisboa, o facto da sua história pessoal, a sua biografia estar diretamente ligada ao centro de Lisboa. Nasceu no largo de São Carlos, a sua vida cultural e a sua vida do quotidiano, o seu trabalho, passou-se na Baixa pombalina, os seus cafés de preferência eram A Brasileira do Chiado (…) e O Martinho da Arcada (…) e aquela estátua que está n´A Brasileira, em que ele está em tamanho natural (…) é quase uma reprodução de uma presença (…) que não é só etérea, imaginária, conceptual mas uma presença efetiva”, começou por dizer, destacando a “ligação física” do poeta à cidade de Lisboa, à semelhança da ligação do irlandês James Joyce a Dublin ou de Kafka a Praga, entre outros. “São figuras que pairam, que têm uma importância decisiva na História e no caso de Lisboa, o Pessoa ganhou esse lugar e há como que uma correspondência entre o Pessoa e Lisboa, o que de resto também encontramos na sua obra”, referiu, apontando como um dos exemplos o Livro do Desassossego que se passa na Baixa pombalina e em que Bernardo Soares “é a figura do herói” ligado a “um momento” (as primeiras décadas do século XX) e “a uma geografia”, a “um lugar”.
Uma ligação tanto mais forte quanto, referiu, o facto de Fernando Pessoa ter escrito um guia turístico, chamado “O que o turista deve ver”, escrito em língua inglesa (…) “vendido a quem quisesse planear visita a Portugal, ou a Lisboa muito concretamente, e é muito curioso que ele tivesse a noção de que o turismo ia ter a importância económica e cultural que tem hoje”.
Ainda sobre a ligação a Lisboa, Fernando Cabral Martins cita “a figura de Álvaro de Campos que, além de ser um habitante de Lisboa” se refere “constantemente às ruas, às casas, às cores das casas de Lisboa, ao rio”. “Ouvimos os barulhos das ruas, as noites silenciosas atravessadas por certos sons que nós reconhecemos serem os sons daquela época”, diz.
Sobre a aprendizagem do poeta, o professor universitário disse que “a providência, o destino, não sei o que lhe hei-de chamar, quis que ele tivesse uma educação inglesa, coisa aliás bastante rara na Lisboa da época (…) teve a sorte de ter essa outra janela para uma cultura diferente (…) na medida em que ele foi educado na colónia inglesa do Natal, que hoje se chama África do Sul, onde fez toda a sua escolaridade, aprendeu aprofundadamente as bases da cultura inglesa e leu os grandes clássicos ingleses”, mas que também teve “sorte “ por ter vivido um momento de revolução com o republicanismo que “não foi uma revolução de cravos, de flores” mas “de grande violência, de transformação de um estado político, de uma conceção da sociedade milenar, em que foi preciso cortar com uma tradição imensa, muito entranhada na psique das pessoas em geral”, um período que também correspondeu à 1.ª Grande Guerra.
Prosseguindo na sua intervenção, Fernando Cabral Martins refere que “a violência na Europa e fora dela foi concomitante com uma revolução de ordem cultural e artística”, “uma alteração nos modos de fazer e conceber a arte” e que essa revolução se chamou vanguarda, ou vanguardas.
“Em Portugal, essas manifestações foram relativamente poucas mas aquelas que aconteceram foram de enorme relevância e a principal das quais foi a publicação de Orpheu em 1915”, que considerou ser, “sem exagerar, o momento da arte portuguesa mais importante do século XX (…) porque se reuniu naquela revista um conjunto de génios que colaboraram dessa verdadeira explosão e que são nomes como o (Fernando) Pessoa, o (Mário de) Sá-Carneiro, (José de) Almada Negreiros, o Amadeo de Souza Cardoso, o Santa Rita Pintor e outros (nomes) menores mas de grande importância”.
Fernando Cabral Martins interroga-se se a genialidade não advém do tempo em que as pessoas vivem para depois afirmar que “as condições em que Pessoa viveu foram condições que potenciaram imenso (…) o que para nós hoje é o seu traço distintivo, o seu grande parâmetro caracterizador e também o seu grande enigma que são os heterónimos”. “Os heterónimos nascem precisamente em 1914, na altura da grande explosão da vanguarda na Europa e em Portugal e com uma situação revolucionária que permite tudo (…) e os heterónimos têm em si essa energia transformadora, essa hipótese de fazer alguma coisa de completamente nova”.
Mas, na sua linha de pensamento, tudo tem antecedentes e, neste caso, assenta “numa linha que já existia desde os primórdios do Romantismo (…) numa linha que define os autores inventados”. “O heterónimo precisa do dispositivo textual e este já estava instalado na tradição literária”, dando como exemplo Mário de Sá-Carneiro que, em 1914, publica o texto poético Além (…) “em que o tradutor mistura-se muito com o texto traduzido” e em que há “a biografia de um autor imaginário”. O palestrante refere que “quando aparece pela primeira vez o Álvaro de Campos, ele aparece do mesmo modo. Aparece como sendo o autor do Opiário e da Ode Triunfal do Orpheu 1, mas essas duas composições, que são atribuídas a esse autor, são publicadas por Fernando Pessoa, que aparece como editor”.
Fernando Cabral Martins refere que “a biografia do autor inventado” surge em 1935, “numa célebre carta ao Adolfo Casais Monteiro, chamada correntemente Carta sobre a Génese dos Heterónimos” e que os heterónimos são apresentados publicamente em 1924/25 na revista Athéna, preparada e dirigida por Fernando Pessoa. “Então é que eles aparecem na sua completude, naquilo que os hegelianos chamavam e chamam salto qualitativo (…) e é aqui que reside o enigma” porque “com o Pessoa há uma coisa nova, o tal salto qualitativo é que não é só um, são vários e há entre eles uma relação muito forte (…) uma interação dramática (…) em que há um mestre (Alberto Caeiro) e os discípulos (Ricardo Reis e Álvaro de Campos) e que, cita Fernando Pessoa, “cria um campo gravitacional à sua volta de tal maneira forte que atrai outros, que ficam em órbita””.
O investigador salienta ainda que “há uma transformação na obra de Pessoa” no final da sua vida, “que tem a ver com o aparecimento do Livro do Desassossego na sua 2.ª fase” em 1929, em que “há um salto qualitativo” uma vez que “Bernardo Soares já não é o autor, é narrador e o Fernando Pessoa é o autor”. “Ninguém se entende sobre o número de autores imaginários na obra de Pessoa (…) mas o que é facto é que nenhum deles se aproxima sequer da complexidade dos três heterónimos centrais (…)” que “manifestam uma fortíssima unidade, que está lá e existe para combater e compensar toda essa dispersão e toda essa multiplicação e multiplicidade que a invenção de autores e a dispersão de personalidade, desdobramento contém”.
E essa unidade dos três heterónimos revela-se, segundo o orador, no espaço: “o Alberto Caeiro tem a ver com o centro, ele era do Ribatejo; o Ricardo Reis tem a ver com o Norte, nasceu no Porto; e o Álvaro de Campos é algarvio, nasceu em Tavira”. “Depois, o Alberto Caeiro tem a ver com o presente, com as sensações, com o contacto com as coisas que estão à nossa volta (…) o Ricardo Reis só se preocupa com o paganismo e os poetas antigos (…) e complementarmente, o Álvaro de Campos está inteiramente virado para o futuro, inteiramente voltado para o tempo que vai vir, que a ciência moderna e as novas condições do homem contemporâneo preparam”. Essa unidade também se manifesta do ponto de vista da personalidade dos autores inventados. Diz Fernando Cabral Martins: “O Alberto Caeiro, que é o mestre, é absolutamente equilibrado, é um prodígio de equilíbrio, é quase um semi-deus na sua serenidade; o Ricardo Reis não, é um contemplativo, medita, está inteiramente virado para o seu umbigo; o Álvaro de Campos é o contrário, é totalmente expansivo, é um grito permanente”. Também refere que o próprio mundo em que eles habitam é diferente e complementar.
Para concluir, Fernando Cabral Martins destaca que os heterónimos e a heteronímia “têm uma filosofia completamente clara” e para ilustrar cita um fragmento de Fernando Pessoa: “Tendo todas as ideias e todos os sistemas uma ponta de erro e uma ponta de verdade, todos são ad infinitum sustentáveis, refutáveis e ressuscitáveis”, ou seja, que “a verdade não existe, tudo é permitido (…) uma ideia muito central para o homem moderno”. Ainda segundo ele, “Pessoa trabalhou com a ideia segundo a qual é preciso respeitar a verdade dos outros e encontrar um modo de diálogo, de relação”.